Abre a janela formosa mulher, cantava o
poeta-trovador
Abre a janela formosa mulher, na velha Lapa
que passou
Assim começava o samba-enredo da Portela do ano
de 1971, de autoria de Ary do Cavaco e Rubens, contando em forma musical a
história de um dos bairros mais conhecidos do Rio de Janeiro, sobre o qual
pairava a ameaça do desaparecimento.
A Lapa na
época colonial, em tela de autoria provável de Leandro Joaquim. À esquerda, a
Igreja
de N.Sª da Lapa do Desterro, e acima o Convento de
Santa Teresa. O Passeio Público ainda
não existia, e em seu
lugar pode ser vista a lagoa do Boqueirão.
No começo nada mais que um acesso à zona sul, e —
mais importante — às águas do rio Carioca no Flamengo, a localidade começou a se
desenvolver com a construção de um seminário para religiosos, iniciativa do
padre Ângelo de Siqueira, com obras iniciadas em 1751. O projeto incluiu uma
capela em louvor de N.Sª da Lapa do Desterro, origem do templo atual. O
seminário, bastante concorrido na época, teve dentre seus professores o Padre
Perereca (Luiz Gonçalves dos Santos), que tempos depois descreveria em detalhes
a época de D. João em sua conhecida obra "Memórias Para Servir à História do
Reino Do Brasil". Ao lado da Igreja, a Irmandade do Espírito Santo da Lapa
do Desterro erigiu em 1773 sua capela, famosa pelas festas do
"Império".
Vem dos vice-reis e do tempo do Brasil
Imperial
Através de tradições, até a República
atual
A criação do Passeio Público, em 1783,
substituindo a suja lagoa do Boqueirão com a primeira área de lazer da cidade,
bela obra nascida do talento de Mestre Valentim e da iniciativa do vice-rei
D.Luís de Vasconcellos, atraiu mais pessoas àquela que até então era uma área
desvalorizada, a qual teve assim sua fortuna súbitamente revertida. O bairro
continuou concorrido, e, a partir da segunda metade do século XIX tornou-se um
dos pólos mais conhecidos de diversão, freqüentado por vários artistas e público
em geral.
Cruzamento da
Av.Mem de Sá com rua Visconde de Maranguape, nascido com
as
reformas de Pereira Passos a partir de 1904, e uma das marcas
mais
conhecidas da época boêmia do bairro, até sua
destruição em 1974.
(foto CPDoc-Jornal do Brasil)
Assim foi até 1904, quando as reformas feitas
durante a gestão de Pereira Passos na prefeitura mudaram bastante sua
fisionomia. A nova avenida Mem de Sá teve seu prolongamento no lado da Lapa,
criando um cruzamento com a rua Visconde de Maranguape, que se tornou uma de
suas marcas mais conhecidas. Foram nessas ruas, com vários cabarés, que nasceu
a fama de boemia e reduto de malandragem ao longo do século passado, incluindo
personagens famosos como Madame Satã e outros.
De algum modo, contudo, a presença do bairro
incomodava as elites, e, após o golpe militar de 1964, começou a se pensar na
eliminação do "antro de libertinagem e marginalidade". Para tal, os governantes
apontaram alguns "gênios urbanísticos", sempre disponíveis — especialmente em
regimes autoritários — quando surge a oportunidade de destruir o passado e
séculos de patrimônio para impor à coletividade suas idéias estéticas, forçando
gerações presentes e futuras a conviver com um espaço que quase sempre não
agrada, além de amputar a conexão histórica anterior. Durante o governo Chagas
Freitas, no final de 1974, pouco antes da fusão com Estado do Rio, era
completada a destruição do bairro, criando mais um espaço vazio que, como
acontece quase sempre, foi usado como estacionamento por muito tempo. A Lapa
verdadeira, essa, deixava de existir.
Foto aérea da
Lapa, antes de sua destruição. Com a única exceção da
Fundição
Progresso, na rua dos Arcos, todos imóveis
desapareceram, e com eles a Lapa
tradicional. Mais uma
vitória daqueles que o historiador Magalhães
Corrêa
apelidou de "construtores de desertos", tão ativos
hoje quanto então.
(foto
CPDoc-Jornal do Brasil)
A Lapa de hoje, a Lapa de outrora, que
revivemos agora...
Em um momento que se vive uma explosão da
especulação imobiliária, com grande parte da cidade sendo destruída e
substituída por construções que poderão causar dano irreparável à sua estética
natural e história, tudo em nome da euforia da copa do mundo e da olimpíada — na
verdade mais uma coleção de jogadas e negociatas com as quais muitos políticos e
seus asseclas irão provávelmente enriquecer mais ainda — é oportuno ter em mente
o que ocorreu com a Lapa, assim como o que foi para sempre perdido. Nesse
sentido, vale a pena lembrarmos outra música relativa ao bairro, composta por
Chico Buarque em 1976, Homenagem ao Malandro. Sua mensagem continua mais
atual que nunca:
Eu fui à Lapa e perdi a viagem, que aquela
tal malandragem não existe mais
Agora, já não é normal o que dá de malandro
regular, profissional
Malandro com aparato de malandro
oficial
Malandro com contrato, com gravata e
capital,
Que nunca se dá mal...
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