Quase todas as obras feitas ao longo do litoral
do Rio de Janeiro, principalmente entre o centro e a zona sul, tiveram como
denominador comum o fato de que o mar era cada vez mais afastado do convívio com
os habitantes. No começo do século passado, durante a administração Passos na
prefeitura, fizeram-se vários aterros que retificaram a linha costeira do centro
até Botafogo, onde se abriu a avenida Beira-Mar. Desapareceriam o Cais da
Glória, a praia do Russel, e no Flamengo o mar ficou mais distante das casas,
apesar de ainda poder ser ouvido e percebido pelo olfato. Após o Aterro,
contudo, tem de se andar muito para chegar até a água, a qual não pode ser mais
vista como antigamente.
Ressaca na
Praia do Flamengo, no começo do século passado
(Revista Eu Sei
Tudo, 1919)
A mania dos aterros continua até hoje, e parece
que existe uma compulsão incontrolável de colocar sempre mais alguma coisa junto
ao mar, que com certeza irá prejudicar a vista. Além de não ser visto, a não ser
que se esteja no alto de um prédio, seu distanciamento também privou os cariocas
de seu aspecto mais imprevisível, as ressacas, que periódicamente deixavam sua
marca. O poder destrutivo das águas, que, insufladas pelo vento, invadiam ruas e
casas, causava grande transtorno, mas ao mesmo tempo atraía a curiosidade de
muitos, que se arriscavam para ver o flagelo das ondas.
Muitas ressacas aconteceram na história do Rio,
castigando tanto o centro como as praias da zona sul e o interior da baía, sendo
consideradas como mais uma entre as várias fatalidades cotidianas, como
enchentes, resfriados, impostos ou a morte. Sua familiaridade pode até mesmo ser
constatada no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, onde Escobar, o amigo
da onça de Bentinho, o Dom Casmurro, enfrentava com destemor as ondas da Praia
do Flamengo, até o dia em que estas levaram a melhor e ele morreu afogado. Nessa
época, em torno de 1870, poucas pessoas se aventuravam no mar bravio, que se
chocava violentamente contra o paredão de pedra próximo às moradias da praia,
substituído por outro após a construção da Av. Beira-Mar, agora em local mais
distante.
Parte da
antiga muralha à beira-mar na esquina da Praia do
Flamengo
com rua Almirante Tamandaré, exposta em obras no
ano de 1998, e
provávelmente contemporânea à ação descrita
no romance
D.Casmurro, de Machado de Assis (foto do
autor).
Nada disso mais existe, e só em ressacas
excepcionais algumas praias são atingidas, como Ipanema e principalmente o
Leblon, por conta de sua faixa de areia estreita. É conveniente que não tenhamos
mais nossa rotina prejudicada por tal acontecimento natural, mas, ao evitarmos
esse contratempo, também perdemos o contato com uma das mais importantes
características da vida carioca, presente ao longo de toda sua
história.
Ir à praia é muito bom, mas sempre que possível
deveria ser restituída a vista do mar, como se fez recentemente na Praça XV, com
a desativação de um infeliz estacionamento de automóveis existente ao lado da
estação das barcas que impedia sua visão. Iniciativas nesse sentido podem trazer
de volta um pouco da convivência com esse elemento tão indissociável de nosso
passado e sempre inspirador de uma admiração inesgotável.
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