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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cemitério dos Pretos Novos destaca colossal dimensão da escravidão no Rio

Um drama sob o chão da cidade

Análise do Cemitério dos Pretos Novos destaca colossal dimensão da escravidão no Rio

Ana Lucia Azevedo
O GLOBO


Publicado:

19/11/11 - 9h00

Atualizado:

19/11/11 - 17h10





A obra "Enterro de uma negra" mostra a importância do funeral na cultura dos escravos

Reprodução



Sepultada por toneladas de terra e séculos de esquecimento, jaz no Centro antigo do Rio, uma dolorosa memória da escravidão. São os resquícios do Cemitério dos Pretos Novos, cimentados sob os bairros da Gamboa e da Saúde. Eles reaparecem aos poucos, em escavações, análises de ossos, dentes e objetos. Cada um deles revela um pouco mais de uma história que assombra pelas dimensões da crueldade e da ambição que trouxeram da África milhões de escravos para o Rio. Uma dessas análises foi concluída este ano e confirma a tese de que a cidade foi um dos maiores portos de entrada de escravos das Américas.



Pessoas escravizadas originárias de quase todas as partes da África chegavam ao Rio e daqui podiam ser levadas para o restante do país. Muitas não resistiam às condições desumanas da travessia do Atlântico ou do mercado de escravos do Rio e eram enterradas perto do porto. O termo enterro é, de fato, um eufemismo. Os corpos eram abandonados à decomposição ou queimados.



Nos anos 1990, alguns desses corpos foram encontrados durante a reforma de uma casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa. Arqueólogos do Instituto de Arqueologia Brasileira fizeram ali em 1996 um resgate do que fora acidentalmente exposto, publicando depois os primeiros estudos. Mas foi só este ano que cientistas concluíram uma análise mais detalhada dos dentes e ossos. Um trabalho de detetive, com tecnologia moderna, para investigar um drama de quase 200 anos. Apoiada pelo CNPq e pela Faperj, a pesquisa reuniu cientistas da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), do Museu Nacional/UFRJ, do Laboratório Geochronos da UnB e da Universidade de Indiana, nos EUA.



— Há vestígios de 30 pessoas. Estão muito degradados — diz Sheila Mendonça, bioantropóloga da Ensp.



O DNA, de tão degradado, por enquanto nada revelou. Mas os pesquisadores recorreram a uma técnica diferente e menos conhecida pelo público. Chamada de análise de isótopos de estrôncio, ela mede a proporção desse elemento químico nos dentes. É uma espécie de DNA geoquímico. O estrôncio é um metal de nome estranho e características curiosas. Essas proporções são assinaturas geoquímicas que dependem das características das rochas de uma dada região.



— A análise do estrôncio do esmalte dos dentes permanentes, que são formados na infância e não se remodelam, revela um indício de onde viveu uma pessoa nos primeiros anos de vida — explica Ricardo Ventura Santos, coordenador do grupo, da Ensp e pesquisador do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional.



A diversidade geológica na África compreende quase toda aquela existente no planeta. O estrôncio extraído dos dentes das pessoas enterradas no Cemitério dos Pretos Novos reflete essa diversidade planetária.



— As pessoas ali vieram de todas as partes da África. Nosso estudo reforça como o tráfico de escravos era uma prática espalhada pelo continente africano. Indica também as monumentais dimensões do tráfico realizado pelo porto do Rio — destaca Ventura.



O Cemitério dos Pretos Novos foi criado pelo Marquês do Lavradio em 1760. Por 70 anos, funcionou ali uma fábrica de horrores. O marquês se viu obrigado a abrir um novo cemitério depois que o porto de escravos foi transferido da Praça XV para o Valongo (atual Rua Camerino).



— Temos que levar em conta que nosso conceito moderno de cemitério não se aplica ao que existia àquela época. O Cemitério dos Pretos Novos consistia em um lugar cercado, onde os corpos eram queimados ou deixados insepultos. Covas eram abertas e corpos, empilhados — explica Sheila.



Os pesquisadores calculam que lá tenham sido enterradas, pelo menos, de 20 mil a 30 mil pessoas. O Cemitério dos Pretos Novos era o destino de muitos dos que já chegavam doentes. Ele podia ser avistado do porto e do mercado de escravos do Valongo, para horror dos cativos. O cemitério passou a receber os enterros antes destinados ao Largo de Santa Rita, em frente à Igreja de Santa Rita.



— Não existem estimativas da taxa de mortalidade dos escravos que chegavam ao porto, mas sabemos que deveria ser elevadíssima. Um dos aspectos importantes das pessoas enterradas lá reside no fato que, ao que tudo indica, apenas 5% das pessoas enterradas lá não eram escravas. Isso torna o Cemitério dos Pretos Novos o mais africano do Brasil — diz Sheila.



Ela, Ricardo e outros pesquisadores, incluindo Murilo Quintans Bastos e Roberto Ventura, da UnB, buscam pistas sobre as origens dessas pessoas mortas pouco após o desembarque. Com as histórias dos mortos esperam dar vida a um dos menos conhecidos capítulos da história da escravidão no Brasil.



Depois que o cemitério foi fechado (por motivos “sanitários” e legais, já que o tráfico de escravos foi proibido), a cidade começou a aterrar o pântano e a praia. Terra e areia cobriram os restos dos mortos e a memória. A Rua do Cemitério, por exemplo, hoje chamase Pedro Ernesto.



Até agora, nunca houve escavações contínuas na região dos Pretos Novos. O material analisado é resultado do trabalho da bioarqueóloga Lilia Cheuiche Machado, do IAB. Lilia observou que a maioria dos mortos era de homens jovens, inclusive crianças.



— Todo o material que analisamos vem de quatro buracos. Os ossos estavam misturados — analisa Sheila.



Das 30 pessoas, só duas estavam fora do padrão esperado. Um era um homem mais velho, que poderia viver no Rio há mais tempo, e outro talvez não fosse africano.



— Todos os demais eram africanos recém-chegados. Um dos aspectos que nos chamou a atenção foi encontrar dentes com sinais de polimento — observa Sheila.



O polimento é fruto de uma forma de higiene oral praticada por muitos povos africanos.



— Esse polimento era resultado da mastigação de plantas específicas, funcionava como pasta de dentes. Mas só há sinais da prática em recém-chegados. Depois, elas não tinham mais como limpar os dentes dessa forma e os sinais desapareciam. Alguns dos que analisamos possuíam sinais bem claros, indicando que deveriam ter chegado há pouco tempo — frisa Sheila.



Ao analisar marcas de polimento talvez seja possível identificar que espécies eram usadas, onde existiam e, assim, de onde veio a pessoa que as utilizavam. O trabalho continua. Mas será fundamental que escavações revelem mais restos mortais e busquem reconstruir outros dramas pessoais integrantes de um dos mais dolorosos momentos da história do Brasil.



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