Pequena África renasce no cais do porto do Rio
EXTRA
Aos olhos da mãe de santo Celina de Xangô, os canteiros de obras do Porto
Maravilha escondem uma realidade mística. Tratores e operários, em sua visão
espiritual, revolvem uma terra sagrada: a Zona Portuária, chamada de Pequena
África. Desde agosto, a religiosa é voluntária no reconhecimento de peças
extraídas do Cais do Valongo, o maior porto de escravos das Américas no século
19.
Soterrado pelo Império para ocultar os horrores da escravidão, o sítio
arqueológico foi revelado pelas obras de drenagem na Avenida Barão de Tefé. Onde
todos veem pedras, Celina enxerga orixás e objetos sagrados usados pelos
africanos para suportar com fé as dores do cárcere:
— A pesquisadora achou nas escavações uma imagem de Bara, que é o orixá Exu.
Como é católica, ficou até com medo de pegar, achando que era uma coisa ruim.
Expliquei que ele é um orixá mensageiro, que tem a ver com virilidade e poder,
por isso foi demonizado. Imagina, ele era o gostoso da história!
Lágrimas nos olhos, a sacerdotisa afro destaca a importância das peças
trazidas pela equipe da professora Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu
Nacional da UFRJ, responsável pelo sítio.
Celina já reconheceu otás (pedras que representam os orixás), monjolós e
seguis (contas sagradas). Todos vindos do Cais do Valongo, que deverá ser aberto
para visitação em junho. Um presente das obras do porto para a história da
cidade.
— Encontrar os objetos mágicos religiosos nos causou forte emoção. Eles
mostram que, no meio da mais absoluta dor, escravos mantinham a esperança. É
comovente — declara Tânia, que buscou três sacerdotes afros para reconhecer e
comprovar os significados das peças.
Radialista criada em São Gonçalo e diretora do Centro Cultural Pequena
África, Celina se mudou para a Rua Sacadura Cabral, na Zona Portuária. Não quer
mais tirar os olhos do campo sagrado de suas descobertas.
— Se sou Celina de Xangô (Ydaobá), agradeço aos ancestrais. Não fecharei meus
olhos a isso. Minha raiz está toda enterrada aqui.
Circuito vai valorizar a cultura negra
A Pequena África compreende a região entre os bairros Gamboa e Saúde, a Praça
Mauá e um pedaço de São Cristóvão. Nesse lugar, baianas como Tia Ciata
realizavam encontros musicais e religiosos — as festas de candomblé — em suas
casas, além de seduzir o povo com os sabores de seus tabuleiros. Essa história
será contada aos cariocas e turistas que visitarem a Zona Portuária.
— Quando as obras ficarem prontas, o circuito será um grande museu a céu
aberto. É a preservação do patrimônio material e imaterial da cidade — explica o
vereador Paulo Messina, autor da emenda que criou o circuito histórico e
cultural.
Identidade da região
Já o memorial do Cais do Valongo terá 1.350 metros quadrados e arquibancadas
onde cariocas poderão ver preservada parte da história.
— A transformação do Cais do Valongo num monumento à herança africana afirma
o Porto Maravilha como processo de renovação urbana. Mas, ao mesmo tempo, de
preservação da identidade da região portuária — define Alberto Silva,
coordenador do Programa Porto Maravilha Cultural.
Memória africana
- Cemitério dos Pretos Novos
Proprietários de uma casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, levaram susto ao
fazer a reforma no imóvel: encontraram ossadas enterradas. A construção foi
erguida em cima de um cemitério. Pesquisadores acreditam que tenham sido
sepultados no terreno até 30 mil escravos africanos. Muitos já chegavam doentes
da dolorosa travessia nos navios negreiros.
- Pedra do Sal
Palco de rodas de samba até hoje, tem uma escadaria esculpida na rocha. Ali,
desembarcava o sal trazido dos navios de Portugal (brasileiros eram obrigados a
comprar sal importado). Mais tarde, sambistas foram morar na região. No século
20, funcionou o bar João da Baiana. É claro que deu samba!
- Largo de São Francisco da Prainha
Antes do aterro que deu origem ao porto do Rio, o mar ia até o Largo da
Prainha, altura da Rua Sacadura Cabral. As obras revelaram as pedras do antigo
cais e do píer, onde barcos aportavam. Entre os monumentos da região, está a
Igreja do Largo de São Francisco da Prainha.
Saiba mais sobre o projeto
Realizado com cerca de R$ 8 bilhões em investimentos durante 15 anos, o
projeto do Porto Maravilha prevê, por exemplo, a construção de quase quatro
quilômetros em túneis e a demolição do elevado da Perimetral. Ciclovias, 70
quilômetros de vias reurbanizadas e dois museus estão entre as novidades.
Com a escavação para construir galerias pluviais na Avenida Barão de Tefé,
também foram encontradas as ruínas do Cais da Imperatriz, construído em cima do
Cais do Valongo para receber Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, que se
casaria com Dom Pedro II.
Os pesquisadores também planejam construir o Memorial da Diáspora Africana na
Zona Portuária. O objetivo não é reviver o horror da escravidão, mas celebrar a
força, a riqueza e a diversidade da cultura e da religiosidade dos povos
africanos.
A arqueóloga Tânia Lima é auxiliada por Mãe Meninazinha de Oxum, pelo
professor e babalaô Fernando Portugal e por Celina na identificação das peças
encontradas no sítio arqueológico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário