Um tijucano que reconstrói a História
Aos 77 anos, arquiteto comanda as obras de restauração do complexo arquitetônico do Convento de Santo Antônio
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RIO - Bem, há quem tire rugas. Até da cidade. Se não, ainda teríamos o
Palácio Monroe na nossa paisagem e o prédio da Brahma interrompendo a passarela
do Sambódromo. Mas, no que depender de Olínio Coelho, rugas e qualquer outro
sintoma de velhice podem ser restaurados. Ou passar por uma acurada cirurgia
plástica. É o que ele faz, por exemplo, como arquiteto responsável pelo restauro
do complexo do Convento de Santo Antônio, no Largo da Carioca. É o que ele tem
feito há 54 anos como arquiteto, período no qual, entre outras vitórias, chefiou
o pioneiro Patrimônio do Estado da Guanabara, elaborou o decreto de tombamento
do Parque Lage, criou o curso de restauro da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e formou algumas gerações de profissionais com suas aulas de
Teoria e História da Arquitetura em, pelo menos, cinco faculdades do Rio.
— É difícil encontrar um arquiteto na cidade que não tenha sido aluno do
Olínio — atesta Felipe Borel, um dos arquitetos do projeto de restauração do
convento.
Aos 77 anos, que serão completados hoje, Olínio já pensa no próximo trabalho:
a restauração da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência.
— Restauro é um vírus — diz ele. — Depois que você entra, não quer mais
sair.
Filho de Olívia e Antônio
A Igreja da Ordem Terceira fica logo ali, ao lado da de Santo Antônio (na
verdade, ela é parte do complexo arquitetônico do convento). Assim, não vai
mudar muito a rotina de Olínio — o prenome incomum é a junção do nome da mãe,
OLÍvia, com o do pai, AntôNIO —, que sai todo dia de sua casa na Tijuca para
estar às 9h no Largo da Carioca.
Ele é um tijucano militante.
— Quem mora na Tijuca não quer saber de Zona Sul. Tentei morar em Copacabana,
onde passei seis anos, mas acabei voltando.
A Tijuca está nas raízes do arquiteto. A bisavó tinha uma chácara no bairro.
A casa onde nasceu, na Rua Uruguai, ainda está lá, mas transformada numa loja de
produtos para noivas. É no bairro também que ele encontra as memórias de
juventude passada na Praça Saens Peña.
— Minha turma ficava na frente do Café Palheta. Do outro lado da praça, tinha
um botequim, onde eu sempre via o (compositor) Lamartine Babo. E as sessões de
cinema no Cine Olinda eram um acontecimento.
O trabalho na Ordem Terceira ainda vai demorar para começar. A previsão é de
que o restauro no convento, que teve início há cinco anos, só se complete daqui
a dois ou dois anos e meio.
A tarefa de Olínio e de toda a equipe do Cepac (Centro de Projetos Culturais)
é recuperar, numa obra avaliada em R$ 45 milhões, a riqueza original de um dos
prédios mais antigos da cidade (a pedra fundamental da construção é de 1608,
rivalizando em antiguidade com o Mosteiro de São Bento). Grande parte do
trabalho é descobrir o que está por trás das reformas feitas durante a ocupação
militar no complexo, entre 1885 e 1901, e as primeiras décadas que se seguiram a
ela, quando o convento foi administrado por um grupo de freis alemães, ou
simplesmente “os alemães”, como se refere a eles a equipe do Cepac. Entre os
religiosos alemães, havia um arquiteto, o frei Schlag. Este período é chamado,
no projeto do grupo atual, de período de “restauração do convento”. Esta
“restauração”, considerada no projeto como “totalmente extemporânea”, teria
reproduzido “apenas o gosto pessoal do frade arquiteto alemão, Frei Schlag,
descartando qualquer compromisso com a história da arte e a história cultural,
cujos valores impregnados no monumento conseguiram atravessar, incólumes, três
séculos até então”.
— As maiores intervenções foram feitas pelos alemães — revela Olínio,
lembrando, porém, que, em 1953, ouve uma “limpeza” promovida pelo arquiteto
Lúcio Costa.
— Embora desastrosas, as intervenções dos alemães, de certa forma, também
preservaram a obra original.
A “preservação” aconteceu por conta de as obras dos “alemães” apenas
esconderem a construção original, com pinturas sobre pinturas ou detalhes
arquitetônicos “emparedados”. Foi assim que se descobriu agora como era o
frontão (a forma triangular que ornamenta topo de fachadas) original, registrado
numa foto de Marc Ferrez (1843-1923), que já pode ser visto do Largo da
Carioca.
— É um frontão que o Rio não vê desde 1924 — orgulha-se o arquiteto.
Um frontão secular do lado de fora e, do lado de dentro, uma sacristia que,
como Olínio gosta de citar, foi considerada pelo escritor Joaquim Manuel de
Macedo como “a mais bela sacristia do Rio de Janeiro”. São muitos os encantos
que estão para aparecer no histórico complexo arquitetônico do Centro da cidade.
Durante as obras, Olínio convive com algumas histórias que, no futuro, vão fazer
parte da lenda do prédio. A mais divertida delas é, sem dúvida, a que envolve a
recuperação da estátua do pai de São Francisco.
Na restauração das cinco capelas do claustro, estava faltando uma imagem no
altar da Capela do Nascimento de São Francisco. Era uma pequena estátua do pai
do santo. Acreditava-se que fora roubada, que quebrara-se ou que, simplesmente,
desaparecera. Até o dia em que um jovem frei do convento foi assistir à comédia
“A guerra dos Rocha”, filme brasileiro de 2008. Lá estava, numa cena, como
objeto de decoração, a imagem desaparecida do pai de São Francisco. A Ordem
Terceira de São Francisco da Penitência já a recuperou.
O entusiasmo com que esse tipo de caso é dividido entre todos que trabalham
no convento mostra, na opinião de Olínio, que o projeto é “uma escola de
restauro”. Pouco a pouco, a pintura dos claustros volta a ter a cor azul, a
altura do telhado é reduzida com a substituição das telhas francesas pelas
telhas coloniais originais, a azulejaria portuguesa é recuperada.
— Quando você restaura, não pode procurar a finalidade — ensina ele. —
Tecnicamente, temos um compromisso com a teoria do restauro. O uso tem que ser
adaptado ao estado do monumento. Você não pode mudar o monumento por causa do
uso.
Santo de casa faz milagre
É difícil estabelecer os limites do trabalho de Olínio Coelho ali no Largo da
Carioca. Ele mesmo diz que “arquiteto é metido a fazer tudo, é um estado de
espírito especial”. Sobre o prédio específico no qual ele agora se debruça com
seu conhecimento, lembra que “o uso constante manteve o monumento”.
— Se não tivesse sido usado pelos franciscanos desde sua construção, hoje
estaria em ruínas, como muitos conventos por aí — ensina.
Mas seu papel na restauração do complexo arquitetônico pode ser atestado pela
declaração da coordenadora do projeto, Ana Lúcia Pimentel, que, funcionária
aposentada do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
com formação em Administração e das primeiras técnicas brasileiras a se
especializar em Lei Rouanet, atualmente, admite ter “o sangue da restauração
correndo nas veias”:
— O Olínio tem uma experiência enorme que nos embasa a lutar por esta
causa.
Na última quinta-feira, numa espécie de visita guiada pelas obras do
convento, o repórter teve outro exemplo do respeito com que é visto o trabalho
do arquiteto, ao se meter numa discussão surrealista com a restauradora Rejane
Oliveira dos Santos. Comentando algumas imagens que estava recuperando, ela
disparou:
— Santo Antônio é o santo das causas impossíveis.
O repórter desconfiou:
— Ué, mas este não é São Judas Tadeu?
— Também, mas é Santo Antônio quem nos ajuda a encontrar objetos
perdidos.
— Não, este é São Longuinho, aquele dos três pulinhos.
Ana Lúcia Pimentel cortou a discussão com uma afirmação definitiva:
— O importante é que nosso santo protetor é Santo Olínio.
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