Descendentes de escravos brigam com
igreja por posse de imóveis há 200 anos no Rio
Moradores da Pedra do Sal, berço do samba, lutam para manter cultura
Carolina Farias, do R7, no RioTexto:
Veja outras fotos do local
Rua São Francisco da Prainha, na Pedra do Sal, que será titulada como área de quiliombola, na zona portuária do Rio
Parte de uma região conhecida como Pequena África, na zona portuária do Rio de Janeiro, ganhará até o fim de 2010 o título de área quilombola do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Moradores da Pedra do Sal, um dos berços do samba carioca, afirmam que lutam lutam para provar que escravos ocupavam a área já em 1816.
No entanto, a VOT (Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência), irmandade da Igreja Católica, tem documentos que mostram a propriedade da área já no século 17. Existe até registro de doação da área feita por dom João 6º doou a área e imóveis à VOT em 1821.
Com o reconhecimento da área como quilombola, ao menos 17 famílias ligadas à Arqpedra (Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal) devem ser beneficiadas com a titulação. A ordem afirma que entrará na Justiça para evitar a transferência da posse para a associação.
Para dar o título à associação, o Incra prepara um RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) da Pedra do Sal e deve publicar o documento até o final do ano no “Diário Oficial” da União. A área apontada pela Arqpedra tem aproximadamente 200 metros quadrados. É pequena - vai do largo da Pedra do Sal (final da rua Argemiro Bulcão) até o fim da rua São Francisco da Prainha, que termina no largo São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde -, mas foi palco de muitos episódios da história carioca.
Nela, sambistas estivadores descarregavam o sal que vinha do porto e depois se reuniam para rodas de samba. Foi dessa região que saíram nomes como Donga, Pixinguinha e João da Baiana. Atualmente, sambistas se reúnem segundas, quartas-feiras e um sábado por mês para tocar no largo.
A região será palco também de uma das maiores promessas de transformação da cidade para receber a Copa de 2014 e as Olimpíadas em 2016: o projeto Porto Maravilha, que deve revitalizar toda a zona portuária carioca. As obras começaram em junho.
Mas, das 17 famílias que serão beneficiadas com a titulação de quilombola, somente nove residem na área. Isto porque a VOT, proprietária dos imóveis, começou em meados do ano 2000 um processo de despejo de moradores que vivem na área, segundo a Arqpedra.
A VOT afirma que criou um projeto humanitário, com recursos da Comunidade Europeia, e por isso teve de despejar as famílias dos sobrados – a grande maioria deles do fim do século 19 e começo século 20. São oficinas de marcenaria, corte e costura, informática, entre outras atividades, para a população carente do local.
Para Marilucia Luzia da Conceição, da Arqpedra, a VOT começou os despejos e deixou os imóveis vazios para vendê-los. Ela e a mãe, de 80 anos, resistem na área e estão confiantes na titulação para poderem continuar no lugar. Às segundas-feiras, Marilucia vende comidas típicas quilombolas para quem procura o samba da Pedra do Sal.
- Minha mãe continua a pagar o aluguel para não passar por constrangimento [do despejo]. Mas já vi gente sendo despejada, com as coisas jogadas na rua. Teve uma mulher que morreu quando o Oficial de Justiça bateu na porta dela.
Estado das casas
Marilucia e José Marcos Evangelista, também membro da Arqpedra, também alertam para o estado dos casarões da rua, com fachadas caindo aos pedaços. Eles mostraram à reportagem do R7 ao menos três imóveis da rua que eram pontos comerciais e que a VOT teria despejado os inquilinos.
- Não tenho medo das coisas novas, mas não se mata a história. Um povo sem cultura e sem história não dá!
Para a rua mostrada pelos membros da Arqpedra, a VOT tem um outro projeto, que vai ampliar o número de oficinas de aprendizagem para a rua São Francisco da Prainha. A ordem nega que pretende vender os casarões. Na via já há uma padaria escola e uma gráfica.
O plano está no papel desde 2002, no entanto, diante da reivindicação da Arqpedra e da resistência dos moradores em saírem dos sobrados. O administrador dos imóveis da VOT, frei Jair Zolet, explicou os planos para os imóveis da rua reivindicada pela Arqpedra.
- Além da padaria-escola, que já existe vai ter confeitaria, sorveteria, doceria, oficina de corte e costura industrial, informática, agência de turismo e artesanato. Nós solicitamos os imóveis, mas alguns não querem [sair] e o caso está na Justiça.
Em 12 de novembro de 2005, a FCP (Fundação Cultural Palmares), órgão do Ministério da Cultura, publicou a certidão de autorreconhecimento da comunidade oficialmente como remanescente de quilombo, o que reforçou a Arqpedra a reivindicar a titulação no Incra.
Segundo o antropólogo Miguel Cardoso, do Incra, responsável pelo RTID, os sobradões da rua São Francisco da Prainha e o entorno, reivindicados pelos quilombolas, serão incluídos na titulação.
- Mas podem fazer obras, nada impede, isto dependerá dos quilombolas quando tiverem o título.
Cardoso garante que, quando o Incra emitir a documentação, a VOT será indenizada se apresentar documentação regular dos imóveis, sem irregularidade na transmissão dos títulos de posse. O Incra ainda não fez o estudo dessa documentação, segundo Cardoso.
O antropólogo afirmou que o projeto Porto Maravilha não apresenta ameaça às tradições do lugar, que devem ganhar ainda maior proteção com a titulação como área quilombola.
Contestação
Para contestar os argumentos do Incra para a titulação – em 2007 um laudo já havia sido elaborado pelo órgão federal, no entanto, sem dar ao título aos quilombolas – a VOT contratou o antropólogo Carlos Eduardo Medawar para provar que na área não há remanescentes de escravos e nenhuma ligação cultural com o surgimento do samba ou outras manifestações culturais.
Ele disse que fez um levantamento com isenção e que não encontrou ligações daquela região com o surgimento de alguma atividade cultural ligada ao nascimento do samba, mesmo a região sendo conhecida como parte da Pequena África.
- Falei com os moradores mais antigos da região e eles afirmaram desconhecer essa presença de negros aqui. O morro [da Conceição], onde fica a Pedra do Sal, foi povoado por portugueses e espanhóis. O Incra pode estar errado se apontar isso no relatório.
No portal do Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), órgão do governo do Estado do Rio que tombou a área da Pedra do Sal, aponta o local como “testemunho cultural mais que secular da africanidade brasileira, espaço ritual consagrado e o mais antigo monumento vinculado à história do samba carioca”.
A VOT contestará a titulação, como afirmou a advogada da irmandade Tatiana Brandão, na Justiça. Ela disse esperar também pareceres do Ministério Público e outros órgãos.
- Aqui nós concentramos nossa obra social há praticamente 300 anos. Essa área é nossa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário