Nosso prédio é uma obra de arte
Viver em um edifício de grande valor arquitetônico é privilégio de poucos cariocas. Mas, além de ser caro, implica cuidados incomuns e limitações
por Leticia Pimenta | 04 de Julho de 2012
Manuel Ruy, com sua mulher, Maria, no hall do Seabra:
imóvel inspirado nos palácios de Florença
Escondido em meio a arranha-céus feiosos e sem nenhuma importância
arquitetônica, um grupo seleto de prédios residenciais sobressai na paisagem
urbana do Rio. São imóveis que remontam a meados do século passado e se
transformaram em objeto de desejo de quem valoriza espaços exclusivos com status
de obra de arte. Adquirir um imóvel nesses condomínios icônicos significa
comprar não apenas centenas de metros quadrados, mas também um pedaço da memória
da cidade. É um privilégio que não sai barato, como comprova a recente venda da
cobertura do edifício Seabra, na Praia do Flamengo, por 7,2 milhões de reais. A
unidade, um tríplex de 2 000 metros quadrados com elevador privativo, arremata
em grande estilo uma suntuosa construção eclética, inspirada em um palácio
florentino. Erguido há 72 anos pelo comendador português Gervásio Seabra e
conhecido como Dakota carioca (referência ao correlato nova-iorquino, onde John
Lennon morava), o edifício tem dez andares com quatro apartamentos cada um. “Foi
uma homenagem que o comendador fez à sua mulher, a italiana Assunta Grimaldi,
que adorava a Toscana”, conta Manuel Ruy da Silva, dono de um apartamento ali,
que usa como escritório. Sua mulher, a artista plástica Maria Araújo, gosta
tanto do lugar que publicou, na França, um livro em que narra sua história e
alinhava detalhes a seu respeito. “É um símbolo da riqueza de estilos que
influenciaram a arquitetura carioca”, diz ela.
O preço a ser pago para viver em um condomínio com valor artístico vai
além das altas cifras desembolsadas. Invariavelmente, as construções têm muitas
décadas de uso. Para realizar qualquer intervenção, reforma ou modernização, o
morador é obrigado a seguir regras rigorosas. No edifício Ribeiro Moreira, belo
exemplar de art déco de 1928, o síndico José Carvalho controla com mão de ferro
o que pode e o que não pode ser feito nos apartamentos. O prédio integra a Área
de Proteção ao Ambiente Cultural (Apac) do Lido e não pode ter seu aspecto
alterado. Ali é proibida a instalação de modelos split de aparelhos de ar
condicionado, para evitar que a tubulação enfeie as fachadas. Em uma reforma
recente, os elevadores foram renovados, mas a porta pantográfica e as antigas
botoeiras de bronze ficaram intactas. Embora desativadas, as caldeiras usadas
para esquentar a água no passado estão preservadas. Tamanho cuidado valorizou os
apartamentos, que custam hoje em torno de 2 milhões de reais. “Faço informativos
mensais para conscientizar os moradores da joia que eles têm nas mãos”, afirma
Carvalho.
Não há dúvida de que viver em um monumento com décadas de história em uma
cidade em plena ebulição às vésperas da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016 é
uma experiência marcante, capaz de compensar inconvenientes como manter um
climatizador mais antiquado na sala. Tanto que tais imóveis raramente são
negociados pelos métodos convencionais, como os anúncios classificados. As
famílias proprietárias dificilmente se desfazem deles. Os porteiros do Biarritz,
a 750 metros de distância do Seabra, convivem diariamente com o assédio de
potenciais compradores, sem contar turistas e estudantes que vão fotografar e
desenhar o edifício. Tamanha curiosidade tem razão de ser. Erguido na década de
40, trata-se de um dos exemplares de art déco mais significativos do Rio.
Projetada por Henri Sajous, arquiteto francês responsável pelo prédio da Mesbla,
a construção se destaca principalmente pela fachada de balcões arredondados com
dupla curvatura. Na área interna, um belo jardim com mangueiras e pinheiros é
compartilhado pelos moradores. Os apartamentos têm em média 300 metros
quadrados, quatro quartos e um detalhe que os distingue dos imóveis brasileiros:
não há dependência de empregada no projeto original. Outro diferencial são os
apartamentos dúplex no térreo. “É um lugar lindo, que dá a sensação de estarmos
em Paris, em plena Avenue Montaigne. Isso compensa qualquer incômodo provocado
pelos quase setenta anos de uso”, avalia a produtora cultural Alexandra Archer,
moradora desde 1978.
Nem sempre a convivência entre os proprietários e os tesouros históricos
onde eles vivem é tão harmônica. Há dois anos, um prédio na esquina da Avenida
Delfim Moreira com o Jardim de Alah, no Leblon, perdeu parte de um painel de
mosaicos de Paulo Werneck (1907- 1987), um dos maiores nomes do muralismo do
século XX. Uma das netas do artista, Claudia Saldanha, diretora da Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, passava pelo local quando viu funcionários de uma
empresa de reformas arrancando a marteladas pedaços do trabalho de seu avô, que
adorna a fachada lateral. Horrorizada, ela acionou imediatamente a prefeitura,
pois a obra é tombada. A intervenção foi embargada, mas o estrago já estava
feito. “É triste. Isso acontece porque as pessoas, muitas vezes, desconhecem a
importância histórica e cultural de uma peça”, lamenta Claudia. No futebol
existe uma expressão perfeita para ilustrar tal comportamento: “jogar contra o
próprio patrimônio”.
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