O VISCONDE DE OURO PRETO, AFONSO CELSO DE ASSIS FIGUEIREDO
(Ouro Preto, 1837-1912) iniciou a vida com grandes dificuldades,
labutando no magistério particular e no jornalismo para estudar e se formar em
Direito na Faculdade de São Paulo. Exerceu diversos cargos administrativos, e
sucessivamente foi eleito deputado provincial, geral e senador pela sua
província natal, patenteando-se orador impetuoso e valente argumentador.
Aos vinte e nove anos de idade era ministro da Marinha, no Gabinete de 3 de
agosto de 1866, presidido pelo conselheiro Zacarias de Góis e
Vasconcelos; e nessa pasta prestou relevantíssimos serviços
organizando a Marinha que com o Exército cooperava na Campanha do Paraguai. Foi
ministro mais duas vezes, uma no Gabinete Sinimbu (1879), dirigindo o
Ministério da Fazenda, e ainda nesta mesma pasta, em 1889, quando assumiu a
presidência do Conselho de Ministros, a 7 de junho.
Deposto pelo movimento de 1889, foi banido e partiu para a Europa, revelando
em todos os transes que então curtiu, a mais impertérrita compostura.
Não é aqui lugar para serem enumerados todos os trabalhos financeiros,
políticos e jurídicos do visconde de Ouro Preto, mas entre eles
citaremos: — A Esquerda e a Oposição Parlamentar, em 1868; Assessor
Moderno, em 1871; Algumas Idéias sobre Instrução, em 1882; Statu
Liberi, em 1885; Reformas das Faculdades de Direito, em 1887;
Marcas de Fábrica, em 1883; Aos Mineiros, em 1887; Finanças de
Regeneração, em 1887; Reforma da Administração no Brasil, obra
escrita no exílio logo após a revolução. Excursão à Itália, interessante
livro de impressões de viagem, em 1891; Marinha de Outrora, longo e
documentado trabalho histórico, 1894; e Crédito Móvel, em 1899.
Neste mesmo ano entrou a ser publicada a Década Republicana,
apreciação da política e da administração da República em seu primeiro
decênio; e nessa publicação escreveu Ouro Preto duas extensas e
ótimas monografias sobre a Marinha e sobre as Finanças.
Havendo colaborado em diversas folhas políticas, e notadamente na Reforma,
Ouro Preto fundou a Tribuna Liberal, que se publicou de
1888 a 1889 e a Liberdade, que se estampou de 1896 a 1897, sendo então
atacada e destruída pelos adversários.
Faleceu o visconde de Ouro Preto no dia em que exatamente
completava 75 anos de idade, a 21 de fevereiro de 1912.
A Batalha do Riachuelo
Alvorecera brilhante o dia 11 de junho de 1865, domingo (67) da Santíssima
Trindade.
Duas léguas abaixo da cidade de Comentes, na extensa curva que faz o rio
Paraná, entre a ponta daquele nome e Santa Catalina, ao sul, viam-se em linha de
combate, mas com os ferros no fundo e fogos abafados, nove canhoneiras a vapor,
em cujos penóis (68) tremulava a bandeira brasileira.
Eram a segunda e terceira divisões da esquadra, que, depois de juntar às
glórias de Tonelero as de Paissandú e Corrientes, bloqueavam sob as ordens do
capitão-de-mar-e-guerra Barroso da Silva o litoral ocupado pelo inimigo.
Testa de coluna a Belmonte, do comando de Abreu, e fechando a
retaguarda a Araguari, de Hoonholtz, no centro arvorava a insígnia do
chefe o Amazonas, comandado por Brito. Ocupavam os intervalos a
Mearim, comandante Elisiário Barbosa, a Beberibe, comandante
Bonifácio, a Ipiranga, comandante Álvaro, e a Jequitinhonha,
comandante Pinto, içando a flâmula do chefe Gomensoro, a Parnaíba,
comandante Gracindo, e por último a Iguatemi, comandante Coimbra.
O céu irradiava cores esplêndidas e as águas do rio, correndo rapidamente em
uma largura de trezentas braças, por entre as ilhas de Palomera e bancos
adjacentes, faziam luzir nos estreitos e tortuosos canais palhetas de ouro e
prata, que iam quebrar-se (69) em franjas de alva espuma, duas léguas além, na
ponta de Santa Catalina.
Na margem esquerda, coberta de basto e corpulento arvoredo, projetavam-se
(70) ainda algumas sombras, em formoso contraste com a da direita, onde a
natureza virgem do chaco ostentava todos os esplendores de sua selvagem beleza à
luz do astro nascente.
Se o olhar experimentado do nauta pudesse, aos primeiros albores da manhã,
descortinar por entre as árvores gigantescas e emaranhadas silvas da margem
correntina, o que ali se passava, não reinaria tanta calma nos descuidosos
vasos, e pronto soaria em todos eles o toque de alarma, porque um grande perigo
os ameaçava!
É que ao longo do litoral, na parte baixa da curva em que vem desaguar o
Riachuelo, desdobrava-se extensa fila de abarracamentos, erguidos no
silêncio e escuridão da noite.
Dois mil infantes inimigos, cosendo-se com a terra, e tendo ao lado as
mortíferas armas, espreitavam o combinado ensejo para atirarem certeiros tiros
sobre uma presa que reputavam segura, por estar desprevenida.
Mais longe, no extremo da ponta, sobre as desigualdades do terreno e
mascarados pela mata, colocara o coronel Bruguez formidáveis baterias de
foguetes à Congreve e 22 canhões, cujas pontanas firmava sobre todos os
estreitos passos que deveriam descer e subir, cruzar e transpor as canhoneiras
brasileiras, a fim de destruí-las com seus fogos.
Tudo fora planejado pela sagaz perfídia do guarani, que não confia só da
superioridade numérica das forças o êxito dos combates senão principalmente dos
embustes imprevistos e lances de surpresa.
A sorte dos navios brasileiros, porém, estava bem protegida pela santidade da
causa que defendiam, e indomável coragem de seus impertérritos (71)
tripulantes.
Concluída a faina da baldeação, parte das guarnições vogara para a terra em
busca de lenha com que suprir a escassez do carvão, e o resto descansava, à
exceção das vigias que estavam alertas nos cestos de gávea e dos homens
necessários à guarda da tolda.
Os sinos de bordo soaram 9 horas da manhã.
Repentinamente, por sobre a ponta de Comentes, a enfrentar com a ilha de
Mera, levantou-se ligeira nuvem de fumo, e, após essa, outra e mais outra, e
quase ao mesmo tempo ou viu-se cair do tope de vante este grito: — Navio à
proa! e logo este outro: — Esquadra inimiga à vista! Içou de pronto o
Mearim o corespondente sinal.
Rufam os tambores e trilam os apitos em todos os navios das divisões; o
Amazonas desfralda aos ventos o terrífico si-nal: — Preparar para o
combate!
Um estremecimento elétrico corre pelas veias dos valentes oficiais,
marinheiros e soldados; todos acodem pressurosos e contentes aos seus postos,
porque é finalmente chegado o momento de dar um dia de glória à Pátria querida,
e de infligir (72) o primeiro castigo pelas atrocidades cometidas em Mato Grosso
contra populações inermes, (73) delicadas mulheres e inocentes crianças.
Já os fogos estão dispersos, já as amarras são largadas sobre as bóias, as
peças e rodízios acham-se em bateria, abrem-se os paióis, as balas e as
metralhas empilham-se no convés, as gáveas guarnecem-se de atiradores, e os
contingentes do exército enfileiram-se nas bordas. Pairando sobre as pás e de
morrões acesos, só esperam o sinal de — fogo!
Metade das guarnições e os melhores práticos acham-se em terra…
Não importa! Recolher-se-ão aos primeiros estrondos do combate, e o
entusiasmo duplicará as forças dos que ficaram.
O inimigo desce com grande velocidade; ajuda-o a correnteza do rio; dentro de
quinze minutos enfrentar-se-á com as divisões. . . Ei-lo!
Junto à ilha de Mera avistam-se oito vapores rebocando seis chatas rasas a
nivelarem-se com as águas, oferecendo como único alvo a extremidade de grosso
canhão de 68 a 80. Fíame jam-lhe nos topes as três cores da República; trazem os
bojos pejados de gente e larga faixa encarnada divisa-se-lhes por sobre as
bordas. São os homens destinados à abordagem, que revestem, como em dia de
festa, seu rubro uniforme de gala.
(67) Domingo é o dia do Senhor (dies âominicus ou dies
dominica); perdido o substantivo, assumiu o adjetivo a função daquele: o
domingo, e, na linguagem litúrgica, a dominga. Entre os cristãos
substituiu o sábado (sabbath) dos Judeus, como dia consagrado ao descanso
e dado a Deus. (68) Penóis = extremidades das vergas na mastreação dos
navios; pl. de penol. (69) — que iam quebrar-se ou que se iam
quebrar: evite-se: que iam-se quebrar, bem como que iam se
quebrar. (70) Do part. pass. jactus (de jacio, /acere)
formador do freqüentativo jactare, produziram-se no vernáculo, com a
raiz jact (jec, jeic, jet, jeit) os seguintes termos: jacto, jactação,
jactância, jactar-se; abjeção, dejeção, ejeção, injeção, objeção, projeção;
interjeição, rejeição, sujeição; abjeto, adjetivo, conjetura, conjeturar,
dejeto, injetar, interjetivo, objetar, objetivo, projeto, projetar, projetivo,
projétil, subjetivo, subjetivar, trajeto, trajetória; jeito, ajeitar, enjeitar,
enjeitado, rejeitar, sujeito, sujeitar, trejeito, trejeitar etc., todos com
o — ;’ — originário e a idéia fundamental de lançar, fixada na raiz. (71)
— Impertérrito = sem medo, que não se aterra, que não teme. Vocáb.
constituído da raiz terr, do verbo terrere = ter medo, apavorar ou
causar temor, aterrorizar-se, e do prefixo intensivo per, antecedido do
negativoin. (72) Infligir, do lat. injligere,
lançar, atirar, aplicar com violência: infligir um castigo. Infringir,
do lat. infringere (comp. de in -\- frangere) quebrar,
chocar-se fortemente contra: infringir a lei. (73) Inerme — sem
almas. Houve aí o fenômeno da apofonía: alteração da voz pura da raiz
pela antepo-sição de outro elemento (in + arma). Casos semelhantes:
inerte (in + arte); diserto (dis + arte); difícil (dis +
fácil); condenar (com + danar); insípido (in + sápido);
indenizar (in + dano + izar); conculcar (com + calcar);
contubernio (cum -\- taberna); adulterar (ad -f- alter
-f- ar); acento (ad -f- canto); adjetivo (ad -j-
jact -f ivo); anelo (am + halo); irrito (in + ratu);
manietar (mani + alar); inimigo (in -f- amigo); exibir
(ex + habere); insulso (in + salso); insultar (in saltare;
interstício (inter + statio); superfície (super + facie);
benefício (bene -t- facio); ancípite (am -{-capite);
precipitar (prae + capit -)- ar); peregrinar (per -j- agrum
+ ar); inepto (in -f- apto); ocidente incidir (in + cadere); transigir (trans + agere):
descender (de + scanâére); inibir (in +
habere) etc. Essas alterações efetuaram-se no próprio latim.
(74) Entestar, de testa: como arrostar, (Se
rosto, enfrentar, de frente, defrontar, de fronte,
encarar, de cara, todos sinônimos. (75) — Acossados —
perseguidos; verbo acossar, derivado de cosso, forma divergente de
curso, do verbo cursar (lat. cursare, freq. de currere,
correr). Cognatos acorrer, concorrer, decorrer, discorrer, escorrer,
incorrer, intercorrer, recorrer, socorrer, transcorrer; curso, concurso,
decurso, discurso, incurso, incursão, excursão, recurso, transcurso, socorro,
corso, corsel, etc, todos adstritos à idéia de correr. (76) — somenos
(so(b+menos) = inferior, menor.
Formam estes um batalhão inteiro, o 6.° de infantaria da marinha, o mais
aguerrido do exército paraguaio, e cujas façanhas em Mato Grosso corriam de boca
em boca nas ruas de Assunção.
Possantes e hercúleos, foram designados na véspera em Humaitá, pelo próprio
ditador, que os armou de machados e sabres. Dirigira-lhes uma alocução ao
embarcarem, recomendando que não matassem todos os prisioneiros, como prometiam,
levando-lhe vivos alguns.
Rompia a marcha o Paraguai, comandado pelo capitão Alonso,
seguindo-lhe as águas o Igurei, comandante Cabral, o Iporá
comandante Ortiz, o Salto, comandante Alcaraz, o Pira-bebé,
comandante Pereira e o Jejut, comandante Aniceto Lopez.
Também ali vinha, sob o comando de Robles (não se confunda este
oficial-de-marinha com o general do mesmo nome, que invadiu Corrientes) o
Marquês de Olinda, armado em guerra, depois de apresado pelo Taquari,
navio capitanea, que fechava a linha. Nele arvorava sua insígnia de comando
o velho chefe Meza, tendo como capitão de bandeira o capitão-de–fragata
Martinez.
A esquadra paraguaia largou de Humaitá à meia-noite, e, segundo as instruções
do ditador, antes de amanhecer devia passar ao largo dos brasileiros, aproar
depois águas acima, prolongar-se cada navio com um dos vasos inimigos,
descarregar–lhe toda a artilharia e saltar à abordagem. Os atiradores e a
bateria de terra deviam protegê-los e apoiá-los nas peripécias do combate, se
nesse primeiro arremesso não conseguissem apresar os navios brasileiros. Em
marcha, porém, desarranjou-se a máquina do Iberê, que também fazia parte
da expedição, dando causa as tentativas feitas para reparar esse sinistro que já
dia claro entestassem (74) os paraguaios com os navios de Barroso.
Logo trocaram entre si as devidas continências; ao cruza-rem-se
despejaram-se reciprocamente nutridas bandas de artilharia, chovendo de parte
a parte balas e metralhas; era uma chuva de respeito! (As palavras grifadas
são da parte oficial tle Barroso).
Apenas dobraram a ilha Palomera, os navios paraguaios aproaram contra a
corrente, como se pretendessem executar o plano de abordagem; mas, parando em
meio caminho, caíram à ré e de novo seguiram águas abaixo, acossados (75) pelo
vigoroso fogo dos rodízios de popa de seus adversários.
Aonde iriam? Desanimados pela resistência, ou já desbaratados pelas perdas e
avarias, tentariam acaso fugir, procurando os canais de água escassa,
inacessíveis aos navios brasileiros, lodos de grande calado?
Iriam aguardar o combate em lugar previamente escolhido, onde tivessem sobre
os inimigos, que forçosamente haviam de encalhar, a vantagem das manobras e
movimentos livres?
Tal foi o problema que rapidamente se formulou no pensamento do denodado
chefe Barroso, que sem hesitar resolveu ir-lhes ao encontro. Deixando a
Parnaíba, onde desfraldara a sua insígnia na primeira fase do combate,
regressou ao Amazonas, que já então havia recebido o prático, e fêz aos
seus comandados os seguintes sinais: — Bater o inimigo que estiver mais
próximo. — O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever.
Reproduzindo as palavras de Nelson, antes da batalha de Trafalgar, o chefe
brasileiro não lhe ficou somenos (76) no arrojo com que afrontou a morte, sendo,
como êle, o primeiro a dar o exemplo do que exigia dos seus subordinados.
Nelson entrou em fogo, adornado com todas as suas condecorações,
oferecendo-se assim como alvo aos tiros do inimigo. Debalde seus oficiais lhe
representaram que a posição de almirante e chefe lhe impunha o dever de não se
expor com tanto ardimento. Ali ficou até cair mortalmente ferido.
Também Barroso, de pé sobre a caixa das rodas, ondean-do-lhe ao vento a
comprida e alva barba, apresentava sua imponente e marcial figura como ponto de
mira aos milhares de projéteis (77) que lhe choviam em torno como granizo.
Tendo ao lado o intrépido (78) Brito e o habilíssimo prático Gustavino, só
desceu do posto arriscado quando já não havia inimigos a debelar.
Como o herói da Victary, podia também repetir ao terminar a batalha —
Graças a Deus, cumpri o meu dever!
Esperava e não fugia o inimigo, colocado em linha de batalha.
(Palavras da parte oficial). Sob a proteção da artilharia e fuzilaria de terra,
estava êle ao abrigo de qualquer tentativa de abordagem, e para maior segurança,
amarrara as chatas com espias, conservando-se os vapores sobre rodas, cosidos
(79) com a barranca.
A escolha da posição fora verdadeiramente inspirada! O canal tortuoso, em que
os navios brasileiros tinham de manobrar, tão estreito era que ao lado da ilha a
oscilação das águas, causada pela passagem dos vapores, desmoronava (80) a terra
da margem. Ao fazerem a travessia em frente do Riachuelo, os brasileiros
eram obrigados a passar tão rente à alterosa barranca, em que Bruguez assestara
suas baterias, que até pedras arrojavam sobre o convés os soldados paraguaios,
cautelosamente agachados dentro das valas em que se ocultava a infantaria.
Onde quer, porém, que se refugiassem, resolvera Barroso ir procurá-los e
nenhum obstáculo fá-lo-ia recuar.
Ao sinal do navio-chefe, às divisões, seguindo nas águas do Belmonte
(testa da coluna e a primeira a inverter a linha de frente), manobravam para
descer o rio até haver largura em que pudessem dar a volta, prolongar-se com o
inimigo e batê-lo.
(77) O Vocabulário da Academia Brasileira, ao contrário do da
Academia das Ciências, prefere a forma projétil, derivado do fr.
projectile, com o pl. projetis, à pronúncia projétil,
projéteis, do lat. hipotético projectais. (78) Trépido, pávido,
térrito, pertérrito, trémulo, timorato, temeroso — adjetivos de trepidez,
pavor, terror, tremor e temor, cujos antônimos são intrépido, impávido,
intér-rito, impertérrito, íntrêmulo, intimorato e destemeroso.
Observe o estudante que nada tem com a idéia de destemor o adjetivo
intemerato, que quer dizer puro, imaculado, sem nódoa. O lat.
temerare é profanar, violar, ultrajar, manchar, nodoar; temeratus,
desonrado, manchado; intermeratus, puro, imáculo, impoluto, não
profanado: Virgo intemerata, na ladainha = virgem pura, imaculada) "… uma
sociedade e um regime cândidos como o arminho e intemeratos como a neve…"
(Rui, A Imprensa e o Dever da Verdade, 1920, p. 14).
(79) Cosidos = unidos, ligados, encostados; coser-se
com a terra, cem o chão, com a parede, coser-se à parede, ao muro;
coser o ouvido à fechadura.
(80) Desmoronar, do castelhano, formado de morón,
montículo de terra.
Não permitiam a diferença de calado e comprimento dos navios brasileiros que
eles fizessem a rotação no mesmo lugar, sendo-lhes preciso distanciarem-se
grandemente até encontrar espaço.
O Amazonas teve de percorrer uma larga distância, chegando a perder de
vista o resto da esquadra, em conseqüência das sinuosidades do canal. Daí
resultava para os paraguaios mais uma vantagem importante, qual a de facilmente
poderem cortar a linha brasileira, o que efetuaram.
Atravessou a Belmonte o arriscado passo, e fê-lo com toda a galhardia,
suportando ela só todo o peso da esquadra inimiga, dos atiradores e das baterias
de terra, que então se desmascararam.
Virando águas abaixo, encalhou o Jequitinhonha em um banco de areia,
que separa dois canais estreitos, justamente em frente à artilharia de Bruguez.
Fêz a tripulação esforços sobre–humanos para safar a corveta, recebendo a tiro
de pistola o mortífero fogo do inimigo. Não o conseguiu. Travou-se então luta
desesperada, desigual, entre as baterias, três navios paraguaios, que tentaram
abordá-la, e a canhoneira imóvel!
Rareia a tripulação, dizimada (81) pela metralha, mas conserva-se
heroicamente sobre o convés, despejando com suas oito peças violento fogo contra
os de terra, que a fulminam, e repelindo a abordagem com o maior denôdo.
Tombam as vergas e mastros, o tubo do vapor deixa sair a fumaça, que se
escapa em borbotões pelos buracos que o crivam: a proa, as amuradas, os
escaleres voam em estilhaços, convertendo-se em outros tantos projéteis contra a
própria guarnição.
Nem assim deixa ela seu posto de honra, e somente cessa de atirar, ao cair da
noite, depois de calados os fogos do inimigo. Ali encontra morte gloriosa o
esperançoso guarda-marinha Lima Barros; mais 17 cadáveres, entre os quais o do
prático André Mota, e grande número de feridos enchem o tombadilho. É contuso o
chefe Gomensoro, recebendo a seu lado gloriosos ferimentos Freitas, Lacerda e
Castro Silva, seus oficiais.
Repetindo contra vários navios a tentativa de abordagem, expressamente
ordenada por Lopez, os paraguaios afinal conseguem dá-la à Parnaíba, que
descia.
Cercam-na o Paraguari, o Taquari e o Salto. É o primeiro
repelido a metralha, mas os outros encostam-se a bombordo e estibordo. A valente
guarnição, dirigida por Garcindo e entusiasmada pelos heróicos esforços do
imediato Firmino Chaves, e dos oficiais do exército Pedro Afonso Ferreira e
Maia, opõe aos assaltantes invencível resistência.
Mas acomete-a também pela popa o Marquês de Olinda, que lhe despeja
dentro (82) numeroso golpe (83) de gente de aspecto feroz, armada de sabres,
machadinhas e revólveres (84).
Trava-se, corpo a corpo, medonho combate, ou antes, horrorosa carnificina, no
meio da qual os denodados oficiais, negros de fumo e cobertos de sangue,
erguem-se como vultos homéricos, com a espada em punho. Greenhalgh, inda criança
prostra (85) com um tiro o oficial que ousa intimá-lo para arriar (86) a
bandeira, mas perece por sua vez aos golpes da horda que o cerca.
Pedro Afonso e Maia conquistam imorredoura glória para o exército, que
representam, batendo-se a ferro frio e sucumbindo depois de completamente
mutilados. Maia, tendo já decepada a mão direita, apanha a espada com a que lhe
restava e fêz frente ao inimigo.
Marcílio Dias, simples marinheiro, eterniza seu nome pelejando a sabre com
quatro paraguaios, dois dos quais rolam a seus pés; vacila e cai, crivado de
feridas, exangue e moribundo, aos feros. botes dos outros dois.
Escorrega-se no sangue, tropeça-se sobre cadáveres, mas a lura continua,
ardentemente acesa; já o inimigo é senhor do convés (87) desde a popa até ao
mastro grande, apoderou-se do leme e amainou (88) o pavilhão!
(81) Dizimar, derivado de dízimo, forma
divergente de decimo: inicialmente matar na
proporção de um em dez’, depois dilatou o sentido. O dízimo
(também dizmo em Portugal) é a contribuição da décima
parte de um rendimento. (82) que lhe despeja dentro — que despeja
dentro dela: lhe. pron. pess com a preposição de implícita,
pertencente à locução prepositiva dentro de (83) Golpe —
grupo, bando, troço, porção, turba, multidão, (do gr. kólaphos,
pelo b.-lat. colpu, com mudança do — c — em —
g —): "Ordenou., meter dentro na fortaleza um bom golpe
de gente pera dous efeitos’ (Fr. L. de Sousa, Anais de D. João
III, parte 1.*, L. III, cap. XIII); …"por mais numeroso que
seja, na acometida, o golpe de inimigos". (Rui, Répl.,
conclusão). (84) Revólveres, dólares, repórteres, hangares,
tênderes — deve ser o plural desses termos adventícios, à feição nossa,
como se verifica em aljôfares, nenúfares, cadáveres, éteres, mártires,
augures, próceres, lêmures etc. (85) Prostrar e
prosternar são sinônimos; o primeiro formou-se pelo supino
prostratum de prosternSre, como se fora da primeira
conjugação: prostrare; é, pois, uma criação analógica. (86) Não
parece que se deva dar uma só forma aos verbos arrear (enfeitar,
ajaezar, adornar) e arriar (abaixar, descer, depor no
chão)
A guarnição dizimada retira-se para a popa e entrincheira-se datrás das
peças, continuando a resistir.
Durava essa pugna suprema havia uma hora, e os brasilei-ros teriam de
sucumbir ao número, porque oficiais e soldados
tombavam uns após outros, quando o navio chefe, a Mearim e a
Belmonte, apercebendo-se do que ocorria, aproaram cada um por seu lado
para esse grupo tremendo de quatro navios que se (89) enviavam reciprocamente a
morte.
Compreendendo os abordantes o perigo que os ameaçava, largam o costado da
Parnaíba, abandonando os que combatiam no convés. Estes hesitam, ao passo
que os brasileiros, cobrando maior denodo, carregam, indo à frente o imediato
Chaves, e os que não se precipitam no rio são traspassados a baioneta.
Os restos da destemida guarnição atroam os ares com os gritos de vitória. A
Parnaíba está salva, e de novo tremula em sua popa a nobre bandeira um
momento abatida!
Entretanto todos os demais navios tinham vindo ocupar seu posto na linha de
batalha, que se tornava geral e cruamente (90) se feria.
É quase impossível descrever o sublime horror desse prélio infernal,
concentrado em poucas braças de espaço, e no qual cerca de sete mil homens
procuravam desapiedadamente exterminar-se!
Os tiros das peças de artilharia, o estourar dos foguetes à Congreve e o
crepitar da fuzilaria sucediam-se de parte a parte com rapidez tal que o seu
ininterrompido estrondear, imensamente aumentado pelos ecos do rio, ressoava à
população aterrada de Corrientes, e mais longe à ansiosa guarnição de Humaitá,
(como ribombar incessante de medonha trovoada. Estremecia o solo a
léguas de distância, e nas agrestes planuras corriam, eriçados os pêlos,
milhares de animais a esconder-se assustados na escuridão das selvas.
O próprio ardil de que os paraguaios se serviram, mascarando as baterias com
a mata, foi-lhes fatal. Não perdiam os navios brasileiros um tiro. As balas
despedidas da esquadra levavam de rojo corpulentas árvores, que eram outras
tantas monstruosas palanquetas a desmontar canhões, esmagar artilheiros e abrir
claros enormes nas filas dos atiradores, colocados à retaguarda.
A Mearim, ao mando do bravo Elisiário Barbosa, postada a
cinqüenta braças da esquadra e baterias inimigas, arremessa–Ihes cerradas cargas
de artilharia e fuzilaria, repele abordagens e só abandona o posto quando voa em
socorro da Parnaíba ou da Belmonte, prestes a
sossobrar (91). Em seu tombadilho recebe nobremente a morte o guarda-marinha
Torreão.
Depois de agüentar ela só a fúria do inimigo, a Belmonte vê-se
presa de incêndio ateado por uma explosão. Pelos 37 rombos que tem nos costados,
penetra a água e apaga as chamas, mas daí mesmo lhe vem maior perigo. As bombas
e baldes não conseguem esgotá-la, o líquido elemento sobe rápido, alaga dois pés
acima da coberta, a proa mergulha. Só então o intrépido Abreu, que apesar de
ferido se conserva no passadiço, trata de encalhá-la como único meio de salvação
e imediatamente cuida de tapar-lhe os rombos, para voltar ao combate. Caem a seu
lado, morto o 2° tenente Teixeira Pinto, e ferido o prático Pozzo.
No Beberibe o comandante Bonifácio comporta-se com toda a
bravura, expondo denodadamente a vida preciosa, que dias depois devia ser
sacrificada na passagem de Mercedes; na lguatemi o imperturbável
Coimbra é conduzido em braços para a câmara;
Os étimos são duvidosos. (87) Convés de conversu, como
través de transverse, envés, de inverse, revés, de
reverse, todos com — s — final. (88) Amainar — abaixar,
colher, arriar: amainar as velas. Significa também, como conseqüência,
iun-ãear, pois que para isso se abaixa o velame. Em Camões os dois
sentidos na mesma estância: "Tomam vela, amaina-se a verga alta"; "Mas já
as proas ligeiras se inclinavam / para que junto às ilhas amainassem".
(I, 48). Vale ainda por abrandar, sossegar: "Um deus amaina
as ondas". (Odorico Mendes). (89) — se — objeto
indireto; sintaxe menos usada no vernáculo. (90) Cruamente =
cruelmente, sanguinosamente: "…depois de travada e mui cruamente
ferida a batalha"… (J. de Barros, Panegírico, p.
30). (91) Muito mais aceitável parece a escrita sossobrar, oriunda de
sob e sobre (sub-\-supef> so-\-sobr-\-ar «*subsuperare)
subverter-se, virar-se de baixo para cima, afundar-se, do que a forma
soçobrar, tirada por alguns lexicógrafos ao castelhano zozobrar,
mas lá mesmo, não obstante os zz, considerada pelo Dicionário
da Academia como proveniente de sub e supra. A grafia
sossobrar assenta, ademais, na autoridade de Meyer-Lübke,
Gonçalves Viana, J. J. Nunes.
Imediato Pimentel que o substitui no passadiço, perde, cinco minutos depois,
a cabeça, levada por uma bala; assume então o comando o jovem Gomes dos Santos,
executando com bravura as instruções que lhe envia o prostrado comandante.
Este navio colocara-se ao lado do Jequitinhonha para o
defender, e aí suportou com êle todo o fogo das baterias e da esquadra
paraguaia, que se encarniçavam contra a desmantelada canhoneira. No
Iipiranga o denodado Álvaro, gravemente en-fírmo, rivaliza em
arrojo e sangue frio com os mais valentes, e consegue meter no fundo uma
chata.
Hoonholtz, admirável de entusiasmo e bravura, revela, na Araguarí,
qualidades de comando, raras em tão poucos anos. Ele bate-se com
vivacidade extrema, e, ao mesmo tempo que procura causar o maior prejuízo ao
inimigo e cortar-lhe a retinida, socorre por suas próprias mãos, atirando-lhes
cabos, algumas praças que se debatiam contra a correnteza.
Entre o barco e a bateria, no mais estreito passo, cercam-no os três vapores
que tinham abordado o Parnaíba. O Ta-quari
aproxima-se a dez braças, mas recua, recebendo à quei-ma-bucha os
disparos dos três rodízios da canhoneira, simultaneamente carregados a metralha
e a bala.
Os paraguaios, por sua parte, pelejam com uma coragem inexcedível. Não é só o
desprezo da morte que ostentam, senão o desejo de consegui-la como heróis.
Com uma tenacidade cega arremessam-se à abordagem de quantos navios se
avizinham nas diversas peripécias do combate, e as sucessivas derrotas que
experimentam, as perdas enormes, parece que mais lhes excitam a selvagem
bravura.
Suas chatas, atirando ao lume dágua com os grossos canhões que montavam,
despedaçam os flancos dos navios brasileiros, ameaçando submergi-los de instante
a instante. A artilharia e a fuzilaria da margem também arrojam sobre eles
milhares de bombas, balas e metralhas.
A batalha tocou ao seu auge, e é talvez ainda duvidoso o êxito de tão
mortífera contenda, quando na mente do velho Barroso surge a tremenda concepção
que vai pôr glorioso termo à porfia da luta.
Depois de inquirir o comandante Brito sobre a força do navio, e o prático
sobre a profundidade do canal, transmite a ordem que, mais tarde, reproduzida
por Teghetoff em Liss», deu aos austríacos tão célebre vitória. Deixemos que êle
próprio descreva, rapidamente, como cumprimento de um dever comum, em linguagem
simples e modesta, esse feito memorando:
"Subi e minha resolução foi acabar de uma vez toda a es quadra paraguaia, o
que teria conseguido se os quatro vapores inimigos, que estavam para cima, não
tivessem fugido".
"Pus a proa sobre o primeiro e o esmigalhei, ficando completamente
inutilizado, com água aberta e indo pouco depois a pique".
"Segui a mesma manobra com o segundo, que era o Marquês de Olinda,
inutilizei-o e depois ao terceiro, que era o Salto, o qual
ficou no mesmo estado. Os quatro restantes, vendo a manobra que eu praticava, e
que me dispunha a fazer-lhes o mesmo, trataram de fugir rio acima. "Depois de
destruir o terceiro vapor, pus a proa em uma das canhoneiras flutuantes, a qual
com o choque e um tiro foi ao fundo. Exmo. Sr. Almirante, todas estas manobras
eram feitas sob o fogo mais vivo, quer dos navios e chatas, quer da artilharia
de terra e mosquetaria de mil espingardas. A minha intenção era destruir por
esta forma toda a esquadra paraguaia, antes que descesse ou subisse, porque
necessariamente, mais tarde ou mais cedo, tínhamos de encalhar, por ser naquela
localidade muito estreito o canal".
"Concluída esta faina, tratei de tomar as chatas, que ao aproximar-me delas
eram abandonadas, saltando as guarnições ao rio e nadando para terra, que ficava
próxima".
(A Marinha de Outrora, 1895, pp. 168-188).
Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte:
Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.
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