Compras na Ouvidor |
Escrito por Paulo Pacini | |
Qua, 07 de Dezembro de 2011 11:05
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Dezembro: mais um ano se encerra, iniciando para
o comércio a alta temporada, quando multiplicam-se as compras na corrida
natalina, junto com os festejos a encerrar mais um período. A febre consumista,
exacerbada pelos meios de comunicação modernos, leva o público a lojas e centros
comerciais espalhados pelo Rio de Janeiro, com ítens para qualquer poder
aquisitivo. A variedade de mercadorias e sua distribuição torna impossível
destacar um local mais representativo desse setor, e também caracterizar o
cliente típico, tendo o consumo se generalizado no seio da sociedade. No
passado, contudo, tal era possível, pelo menos relativamente, pela existência de
um ponto focal transformado em referência do comércio carioca e até mesmo do
Brasil, que foi a antiga Rua do Ouvidor.
Um dos primeiros caminhos saindo da principal
artéria da área litorânea, a rua Direita (Primeiro de Março), rumo ao interior,
foi conhecida inicialmente como rua do Aleixo Manuel, começando a ser chamada do
Ouvidor em meados do século XVIII, quando lá passaram a residir os ouvidores
enviados pelo rei de Portugal. Uma rua como as outras, relegada à própria sorte
pelos governantes da época, despertaria do longo sono colonial com as grandes
mudanças experimentadas desde a chegada da côrte portuguesa, em 1808.
Ouvidor de outrora, paraíso consumista e rua mais elegante O fim do isolamento do país, tanto por tornar-se, da noite para o dia, metrópole do reino português, quanto pela pressão da Inglaterra, que exigia livre trânsito para seus negociantes, trouxe levas contínuas de estrangeiros que chegavam ao novo, estranho e tropical país, visando as amplas possibilidades de ganho proporcionadas pela presença do rei português e seu séquito. Como se esperava, comerciantes ingleses assumiram a dianteira, mas um novo grupo progressivamente dominaria a cena: os franceses, cuja presença cresceu vertiginosamente após a chegada da conhecida missão artística, em 1816. Com eles, vinha o luxo e a elegância, estranhos ao habitante local, através do comércio de tecidos, perfumes, jóias, livros, móveis e muito mais, além da prestação de vários serviços sofisticados, como cabeleireiros, modistas, gastronomia, etc.
Esse batalhão de profissionais, em sua maior
parte, não tardou em fazer fortuna, criando e educando uma nova geração de
consumidores em um território virgem e alheio à sofisticação européia. Foi o
início do que levaria a rua ser conhecida, na maior parte do século XIX, como a
"via dolorosa dos maridos pobres", expressão de Machado de Assis em seu conto
O Lapso (Histórias sem Data), pois poucos orçamentos resistiam às compras
feitas por uma esposa inconsciente ou irresponsável neste paraíso consumista do
passado.
Ali, em cada vitrine, espreitava o demônio da
tentação, seja em lojas como a Notre Dame de Paris, que desde 1848 foi um
dos principais centros da moda, e também a Casa Raunier, perfumarias como
a Desmarais, Wallerstein e Bernardo, fotógrafos como Georges
Leuzinger, Marc Ferrez e Insley Pacheco, e joalherias como a dos irmãos
Farani. Além disso, era frequentada por intelectuais, atraídos pelas
muitas livrarias com as últimas novidades de Paris, como a Garnier.
Vários jornais também lá tiveram endereço, como o Correio da Manhã e a
Gazeta de Notícias.
Modistas, cabeleireiros, joalheiros... lá se ia o orçamento do mês A importância da Ouvidor como centro de consumo e moda continuou nas primeiras décadas do século XX, mas paulatinamente se esvaziou, à medida em que a cidade crescia e o comércio sofisticado se estabelecia na zona sul. A descaracterização da rua acompanhou a vulgarização do centro da cidade, transformando-o em local exclusivo de trabalho, com população não residente. Na década de 1980, o incentivo ao comércio de rua ilegal causaria sua mais profunda decadência, fato que permanece até os dias de hoje, em maior ou menor grau. A rua do Ouvidor, como as outras, também sofreu as consequências, com a anarquia diária dos camelôs em frente às portas de suas lojas, levando muitos comerciantes a procurar refúgio no interior dos shoppings, único modo garantido, hoje em dia, de se resguardar do caos e proteger o negócio.
É impossível e até mesmo absurdo pensar que a
Ouvidor do passado poderá voltar algum dia, pois a sociedade e as condições são
totalmente diferentes, e é como se estivéssemos noutro planeta. Mas é plenamente
legítimo e justificável que a comunidade aspire viver em ruas limpas e
ordenadas, sem os flagelos que atingem diáriamente todos os pedestres,
especialmente no centro da cidade. Para isso, é necessário que os responsáveis
pela ordem pública façam muito mais que os esporádicos choques propagandísticos
de ordem, quase sempre de muito baixa voltagem.
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