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Escrito por Paulo Pacini
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Qua, 08 de Fevereiro de 2012 11:18
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Até o século XVIII, aquela parte da cidade que
chamamos Mangue fazia jus ao nome, pois o mar entrava terra a dentro por onde é
a Av. Francisco Bicalho, dobrava à esquerda e só terminava nas proximidades do
Campo de Santana. Nessa grande área desaguavam ainda vários rios, como o
Maracanã, Joana, Trapicheiro, Comprido e Catumbi, além das águas estagnadas
próximas ao Morro do Senado, onde fica a atual Praça da Cruz Vermelha. A mistura
da água salgada do mar com a dos rios criou condições favoráveis ao
desenvolvimento de um ecossistema de manguezais, com toda sua flora e fauna
típicas.
O cheiro, contudo, não era dos mais agradáveis, e
com o objetivo de algum dia conquistar a área, foram empreendidas algumas
iniciativas, como as do vice-rei Conde da Cunha, mas a escala da tarefa
ultrapassava os modestos limites coloniais, ficando este vasto manguezal quase
no mesmo estado. Sómente após a chegada da côrte portuguesa, em 1808, é que se
começou a pensar seriamente no gigantesco projeto de aterro.
A tranquila
Vila Guarani cem anos atrás. A rua no meio da foto é provavelmente a atual
Figueira de Melo
Um primeiro incentivo ocorreu após a mudança da
Família Real para a Quinta da Boa Vista, que, pelo seu afastamento dos órgãos
administrativos localizados no Centro, obrigava o monarca a deslocamentos
rotineiros. Para evitar a tediosa viagem pelo caminho seco, mas longo, via rua
do Conde (Frei Caneca), Catumbi e Estácio, fez-se um aterro que permitisse à
carruagem real passar pelo mangue de São Diogo, atingindo São Cristóvão após
cruzar uma ponte. O local continuava malcheiroso e pestilento, por causa dos
mosquitos, e à D. João só restava tapar suas nobilíssimas narinas durante os
poucos minutos do trajeto.
Para estimular a ocupação e empurrar o problema
para os cidadãos, foi baixada em 1824 uma portaria que isentava de tributação os
prédios construídos no local, desde que os proprietários providenciassem os
respectivos aterros. Posteriormente, o governo realizou algumas obras que
progressivamente conquistaram mais trechos. Mas a urbanização como hoje
conhecemos com seu canal central só pôde ser concluída em 1860, com os trabalhos
empreendidos pelo Barão de Mauá.
O canal do Mangue seria prolongado até o cais do
porto a partir de 1903, sendo realizados aterros que retificaram o litoral. De
um lado, desapareceria a Praia Formosa, que ficava onde é a rua Pedro Alves,
enquanto que do outro estava a Vila Guarani , trecho do atual bairro de São
Cristóvão próximo ao canal e à Av. Francisco Bicalho. Um bairro modesto, servido
desde 1883 pelos bondes a burro da Empresa Ferro-Carril de Vila Guarani, logo
adquirida pela Cia de Carris de Vila Isabel.
Essa região esteve por muito tempo ligada ao
transporte ferroviário, passando a receber os trens da E.F. Rio d'Ouro desde
1919, na estação de Francisco Sá, e a seguir com a construção em 1926 da
majestosa gare central da E.F. Leopoldina, a estação Barão de Mauá. Havia uma
vasta rede de trilhos, que conduzia aos armazéns do Cais do Porto, para o
transporte de diversas mercadorias.
Foi recentemente anunciado que a prefeitura
pretende desenvolver nessa área um projeto de urbanização e construção de
prédios apelidado com mais um nome carnavalesco de "Porto Maravilha", no qual
estão incluídos trechos em ambos lados da Av. Francsico Bicalho, do lado de São
Cristóvão e perto da rua Pedro Alves. Nessa última, o espaço será conseguido
através de mais uma destruição do patrimônio ferroviário, um conjunto de pátio
de manobras e armazéns que data do início do século passado. Do outro lado,
pretende-se construir mais um "centro de convenções", culminado por uma torre
bestial de 45 andares, próxima à estação da Leopoldina.
Por melhores que sejam as intenções, e, pelo
retrospecto, elas geralmente não são muito boas, com interesses velados
comandando as iniciativas, é forçoso analisarmos algumas das implicações mais
sérias dessa ação.
Terminal
Marítimo da Gamboa, onde foi construída a "Cidade do Samba"
(Memória
Histórica de Estrada de Ferro Central do Brasil -
1908)
Em primeiro lugar, o patrimônio ferroviário é um
bem precioso, construído com sacrifício desde o século XIX, e é uma
infraestrutura dedicada à produção básica, transportando cargas que seriam
impossíveis e anti-econômicas para o transporte rodoviário. Essa malha de
transporte estava articulada com o Cais do Porto, outra obra voltada para o
setor produtivo real. Por razões de conjuntura econômica, o porto do Rio perdeu
grande parte de seu movimento, mas continua disponível, podendo voltar a
tornar-se um dos mais importantes. Se os acessos ferroviários não existirem
mais, assim como os armazéns, que se transformariam no gênero "cultural", a
capacidade do porto ficaria sériamente comprometida, e por essa razão deveria se
pensar com cuidado no que se propõe. Nos últimos anos o estado vem avançando no
patrimônio ferroviário com avidez, como na construção do "Engenhão", que
liquidou as oficinas da Central do Engenho de Dentro, e na "Cidade do Samba",
que ocupou a área do Terminal Marítimo da Gamboa.
Essas obras com certeza enriqueceram vários
arquitetos e empreiteiras, além, é claro, de muitos no poder executivo e
legislativo. Mas com isso não foram eliminadas possibilidades futuras de
desenvolvimento? Em vários países no mundo todo, as ferrovias se expandem a
pleno vapor, tanto no transporte de passageiros como no de cargas, incluindo
milhares de quilômetros de vias de alta velocidade. Aqui, se destrói o que
conseguiu sobreviver ao século XX em favor do samba e do futebol...
Outro ítem questionável é a torre de 45 andares
perto da Leopoldina. Mais uma monstruosidade a agredir não sómente os moradores
locais e estimular a especulação imobiliária, mas uma violência à paisagem, que
irá macular para sempre o panorama visto por quem chega ao Rio de Janeiro e
passa pela Av. Francisco Bicalho para se dirigir ao Centro, Zona Sul ou Tijuca.
Esse monumento à insensatez irá quebrar a linha das montanhas e a visão do
Cristo Redentor, sendo do ponto de vista turístico um verdadeiro suicídio. Mas a
lógica de sua construção é provávelmente outra, ou melhor, a de sempre, de
enriquecer alguns mesmo que com prejuízo de muitos.
Seria importante que a comunidade se informasse e
adotasse uma postura em relação a essas propostas, que, na forma que se
encontram, poderão causar mais danos que benefícios a todos, depois que a
cortina de fumaça da Copa do Mundo e da Olimpíada se dissipar.
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